Tem sido objeto de muitos debates doutrinários uma das inovações mais marcantes da nova Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, que é a estipulação do seguro-garantia com cláusula de retomada. De um lado, pela própria novidade, que estava sendo ansiosamente esperada por todos os que acompanharam a tramitação do Projeto de Lei que originou a nova norma legal. De outro, pelas incertezas, dúvidas, geradas pelo texto legal, sobre a possibilidade e as limitações de utilização dessa modalidade de garantia.
Tendo como objetivo principal assegurar a plena execução do objeto do contrato, tal como foi definido na avença, o seguro-garantia com cláusula de retomada, denominado no exterior de Performance Bond, tem origem norte-americana, e define, fundamentalmente, que, na hipótese de o contratado não cumprir suas obrigações contratuais, a seguradora se encarregará de fazê-lo, direta ou indiretamente.
Trata-se de uma novidade no ordenamento jurídico das contratações da administração pública, de vez que não constava da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Ao contrário por exemplo, do seguro denominado Bid Bond, garantia específica da fase licitatória do processo, que já poderia ser exigida na antiga lei geral, consoante previsão de art. 31, § 2º, e que foi mantida na nova norma, em seu art. 58, como requisito de pré-habilitação.
A possibilidade da exigência da garantia do tipo Performance Bond é, sem qualquer dúvida, uma decorrência da excessiva quantidade de obras públicas não concluídas em nosso país. Segundo levantamento feito pelo Tribunal de Contas da União, em 2019, 37,5% das obras auditadas[1], executadas com recursos federais, estavam paralisadas. Numericamente, esse percentual correspondia a 14.403 obras paralisadas, com um investimento inicialmente previsto da ordem de R$ 144 bilhões. Observe-se que os dados forem registrados em período anterior à pandemia do novo corona vírus, podendo ter, até, sofrido um agravamento durante a emergência de saúde pública em nosso país.
Algumas situações pontuais já podem ser apontadas como exemplos de utilização anterior do seguro-garantia com cláusula de retomada, antes mesmo do novo diploma legal, como, por exemplo, as obras realizadas no âmbito do Metrô em execução na capital do Estado de São Paulo.
Várias situações vantajosas podem ser apontadas como consequência da aplicação do novo tipo de seguro-garantia. Em tendo absoluto interesse de que o contrato de construção seja integralmente executado na forma contratada, para que não recaia sobre ela a obrigatoriedade da conclusão dos trabalhos, a seguradora poderá ser uma grande parceira da administração pública, desde a fase licitatória até a fase de execução contratual. Afinal, se for contratada uma construtora que represente um grande risco de inexecução, ou se, durante a execução dos trabalhos, for constatado um comportamento irregular, com sucessivos atrasos e inadimplementos de obrigações, a seguradora acabará por ser acionada para a conclusão da obra, o que representará para ela um ônus que é, por certo, indesejado.
Em assim sendo, já na fase de habilitação a seguradora poderá ser partícipe direta do processo, não só com a cobrança de valores mais elevados como prêmio do seguro-garantia para aquelas construtoras que pretendam participar da licitação e que não demonstrem possuir um suporte adequado para assumir o encargo (o que, por certo, dificultará ou até mesmo impedirá a obtenção do 1º lugar no certame licitatório), como até mesmo colaborando com a administração no estabelecimento de exigência de qualificação que minimizem os riscos (o que, da mesma forma, poderá facilitar a contratação de construtora que efetivamente tenha totais condições de execução completa do objeto da licitação).
De outro lado, durante a execução da obra, a seguradora também terá papel preponderante, podendo (devendo) acompanhá-la de perto, para detectar falhas e erros que possam conduzir à extinção do contrato, com a sua consequente obrigação de executar o remanescente ou pagar à administração o valor integral constante da respectiva apólice.
Espera-se, até ansiosamente, que a cláusula de retomada nos contratos de obras públicas contribua sensivelmente para reduzir o quantitativo de obras paralisadas, não concluídas, que representam um enorme desperdício de recursos públicos, cada vez mais escassos, devido aos gastos necessários para a sua retomada, além de deixarem a população sem o atendimento adequado, por falta de instalações próprias dos órgãos da administração.
Uma grande questão que está sendo posta em discussão é o campo de aplicação do seguro-garantia com cláusula de retomada nas obras públicas. Duas disposições legais, aparentemente antagônicas, têm sido analisadas de maneiras diferentes pelos doutrinadores, que chegam a conclusões desconexas, gerando algumas dúvidas sobre a aplicação efetiva dessa novidade legal. Estamos falando basicamente dos arts. 99 e 102 da nova Lei.
O primeiro deles assim dispõe:
Art. 99. Nas contratações de obras e serviços de engenharia de grande vulto, poderá ser exigida a prestação de garantia, na modalidade seguro-garantia, com cláusula de retomada prevista no art. 102 desta Lei, em percentual equivalente a até 30% (trinta por cento) do valor inicial do contrato.
Com base em uma interpretação mais literal do texto legal, parte da doutrina tem entendido que o art. 99 da Lei nº 14.133, de 2021, deixa claro que o seguro-garantia com cláusula de retomada seria aplicável exclusivamente nas obras e serviços de engenharia de grande vulto. Neste caso, como esclarece o art. 6º, inc. XXII, da novel Lei, consideram-se obras, serviços e fornecimentos de grande vulto aqueles cujo valor estimado supera R$ 216.081.640,00, já considerando a atualização de valores promovida pelo Decreto nº 10.922, de 30 de dezembro de 2021. Não concordamos com esse entendimento. Por vários motivos.
A uma, é preciso considerar que não é o art. 99 quem traz as definições da aplicabilidade da cláusula de retomada nas obras e serviços de engenharia. Tanto não é que esse artigo, expressamente, remete as condições de aplicação para as disposições do art. 102. O texto legal é, sim, muito preciso: “… com cláusula de retomada prevista no art. 102 …”. O art. 99 faz apenas menção a essa nova modalidade de garantia, mas, deixa claro que quem trata dela é o art. 102. Este, sim, assim dispõe:
Art. 102. Na contratação de obras e serviços de engenharia, o edital poderá exigir a prestação da garantia na modalidade seguro-garantia e prever a obrigação de a seguradora, em caso de inadimplemento pelo contratado, assumir a execução e concluir o objeto do contrato, hipótese em que:
I – a seguradora deverá firmar o contrato, inclusive os aditivos, como interveniente anuente e poderá:
a) ter livre acesso às instalações em que for executado o contrato principal;
b) acompanhar a execução do contrato principal;
c) ter acesso à auditoria técnica e contábil;
d) requerer esclarecimentos ao responsável técnico pela obra ou pelo fornecimento;
II – a emissão de empenho em nome da seguradora, ou a quem ela indicar para a conclusão do contrato, será autorizada desde que demonstrada sua regularidade fiscal;
III – a seguradora poderá subcontratar a conclusão do contrato, total ou parcialmente.
Parágrafo único. Na hipótese de inadimplemento do contratado, serão observadas as seguintes disposições:
I – caso a seguradora execute e conclua o objeto do contrato, estará isenta da obrigação de pagar a importância segurada indicada na apólice;
II – caso a seguradora não assuma a execução do contrato, pagará a integralidade da importância segurada indicada na apólice.
Todas as regras fundamentais para aplicação do Performance Bond constam expressamente do art. 102, desde a possibilidade de sua exigência até o detalhamento de sua aplicação fática. Exatamente por esse motivo é que o art. 99 não tratou de qualquer regulamentação em relação ao assunto, limitando-se a dispor sobre a possibilidade de sua aplicação, NOS TERMOS DO ART. 102, para as obras e serviços de engenharia de grande vulto.
O art. 102 traz uma disposição genérica, sem qualquer limitação: o seguro-garantia com cláusula de retomada pode ser exigido, como condição obrigatória, na contratação de obras e serviços de engenharia em geral. Sem qualquer tipo de limitação, inclusive em relação ao valor estimado da contratação. Qual seria, então, a finalidade da existência do art. 99 da nova Lei, se as obras e serviços de engenharia de grande vulto já estavam enquadradas nas disposições do art. 102, indagam alguns? A resposta é simples para quem faz uma análise mais cuidadosa do texto legal.
Assim dispõe o art. 96, da Lei nº 14.133, de 2021:
Art. 96. A critério da autoridade competente, em cada caso, poderá ser exigida, mediante previsão no edital, prestação de garantia nas contratações de obras, serviços e fornecimentos.
§ 1º Caberá ao contratado optar por uma das seguintes modalidades de garantia:
I – caução em dinheiro ou em títulos da dívida pública emitidos sob a forma escritural, mediante registro em sistema centralizado de liquidação e de custódia autorizado pelo Banco Central do Brasil, e avaliados por seus valores econômicos, conforme definido pelo Ministério da Economia;
II – seguro-garantia;
III – fiança bancária emitida por banco ou instituição financeira devidamente autorizada a operar no País pelo Banco Central do Brasil.
Enquanto a exigência da garantia é uma discricionariedade da administração licitadora, a escolha da modalidade dessa garantia é uma opção do licitante vencedor, o contratado. Essa é a regra a ser observada. Mais uma vez, no entanto, confirma-se a tese de que TODA REGRA TEM EXCEÇÃO. A excepcionalidade está no art. 102, genericamente, e no art. 99, especificamente para as obras e serviços de grande vulto. Em se tratando de contratações na área de engenharia, independentemente do valor estimado da obra ou serviço, o edital poderá EXIGIR que a garantia seja prestada na modalidade seguro-garantia, com cláusula de retomada. Deixa de haver a possibilidade de opção por parte do contratado, portanto. Bom, mas, isso, por si só, não é suficiente para justificar a existência do art. 99, pois a faculdade de exigir essa modalidade de garantia já consta, também, do art. 102. Não é só.
Analisemos as disposições do art. 98:
Art. 98. Nas contratações de obras, serviços e fornecimentos, a garantia poderá ser de até 5% (cinco por cento) do valor inicial do contrato, autorizada a majoração desse percentual para até 10% (dez por cento), desde que justificada mediante análise da complexidade técnica e dos riscos envolvidos.
Temos, novamente, uma regra a ser observada nas contratações em geral: o valor da garantia que pode ser exigida no instrumento convocatório é de 5% do valor inicial contratado. Excepcionalmente, dispõe a Lei, esse percentual pode ser elevado para até 10%, sendo suficiente para tanto que a administração justifique, na fase preparatória, por ocasião da elaboração dos documentos que irão compor o instrumento convocatório, que a complexidade técnica do objeto e os riscos envolvidos naquele tipo de contratação demandam essa elevação.
Aliás, façamos um parêntese para um comentário especial: temos sugerido que, em todas as contratações que envolvam obras de engenharia, a administração estabeleça a garantia no percentual de 10% do valor global inicial do contrato. Não há necessidade de maiores e nem mais profundas análises para concluir sobre a complexidade técnica que envolve esse tipo de objeto e nem tampouco sobre os riscos envolvidos. Uma simples e até ligeira leitura dos levantamentos feitos nos últimos anos sobre as obras públicas paralisadas em nosso país, com um quantitativo absolutamente desproporcional, é suficiente para justificar o enquadramento do percentual a garantia a ser exigida em 10%.
Se recordarmos as disposições da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, sobre o tema ora tratado, veremos que ela assim dispõe:
Art. 56. A critério da autoridade competente, em cada caso, e desde que prevista no instrumento convocatório, poderá ser exigida prestação de garantia nas contratações de obras, serviços e compras.
(…)
§ 2º A garantia a que se refere o caput deste artigo não excederá a cinco por cento do valor do contrato e terá seu valor atualizado nas mesmas condições daquele, ressalvado o previsto no parágrafo 3º deste artigo.
§ 3º Para obras, serviços e fornecimentos de grande vulto envolvendo alta complexidade técnica e riscos financeiros consideráveis, demonstrados através de parecer tecnicamente aprovado pela autoridade competente, o limite de garantia previsto no parágrafo anterior poderá ser elevado para até dez por cento do valor do contrato.
Vemos que a Lei mais antiga também estabelece, como regra, que a garantia não pode exceder o percentual de 5% do valor do contrato. Excepcionalmente, no entanto, o § 3º do art. 56 permite a elevação desse percentual para até 10%, exigindo a demonstração nos autos da complexidade técnica e dos riscos elevados envolvidos na contratação e estabelecendo, adicionalmente, que essa elevação será permitida exclusivamente no caso de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto. Diferente, portanto, das disposições da Lei nº 14.133, de 2021, que também exige a demonstração relativa à complexidade técnica e aos riscos envolvidos, mas, não limite a elevação do percentual para objetos de valor estimado correspondente a grande vulto.
Sem dúvida, no entanto, que o legislador também se preocupou, sim, com o vulto da contratação. E o fez exatamente no art. 99 da nova norma. Enquanto o art. 98 estabelece o percentual máximo de 5% ou, excepcionalmente, de 10% do valor inicial do contrato, o art. 99 criou uma nova exceção: nas obras e serviços de engenharia de grande vulto, o percentual da garantia pode ser elevado para até 30% do valor global da avença.
Aí está a razão de ser da existência do art. 99. Em princípio, ele pode parecer dispensável, de vez que trataria de uma situação específica (obras e serviços de grande vulto) que já poderia ser considerada como recepcionada pelo art. 102 (obras e serviços em geral, sem exceção), remetendo, ainda, à possibilidade de exigência do seguro-garantia, com cláusula de retomada, de aplicação detalhada neste último artigo. Mas, o art. 99 é importante, sim: nas obras e serviços de grande vulto, E SOMENTE NELAS, a administração poderá exigir que o percentual da garantia seja de até 30% do valor global inicial do contrato. Em todas as demais obras e serviços de engenharia cujo valor esteja abaixo desse limite, o percentual exigível para o seguro-garantia está limitado a 10%.
Assim, então, deve ser entendida a Lei, a respeito da exigência de garantia nos contratos de obras e serviços de engenharia da administração pública:
1) genericamente, o percentual da garantia não pode ultrapassar 5% do valor do contrato
2) excepcionalmente, tratando-se de obras e serviços de complexidade técnica e levando em consideração os riscos envolvidos, esse percentual poderá ser elevado para até 10% do valor do contrato
3) nas obras e serviços de engenharia de grande vulto, o percentual a ser exigido para a garantia poderá ser elevado para até 30% do valor da avença
4) em qualquer contratação cujo objeto seja uma obra ou um serviço de engenharia, independentemente do valor estimado dessa contratação, a administração poderá impor a exigência, no instrumento convocatório, da garantia na modalidade seguro-garantia, com cláusula de retomada, o que não ocorre para os demais objetos, nos quais a modalidade é uma escolha discricionária do contratado.
Na operacionalização da cláusula de retomada, dispõe a Lei nº 14.133, de 2021, que a seguradora poderá, no caso de inadimplemento por parte do contratado, assumir a execução e concluir a obra por execução direta ou indireta, ou, alternativamente, pagar à administração a integralidade da importância segurada, constante da apólice. Nesta última hipótese, caberá à administração contratar a execução do remanescente, devendo fazê-lo de acordo com as disposições do art. 90, § 7º, da mesma Lei.
Claro que dificilmente a seguradora fará a execução do complemento de forma direta, pois não deve possuir habilitação legal para tanto. Deverá contratar, assim, uma empreiteira de obra, em nome de quem deverá ser emitido o respectivo empenho, exigindo a Lei a demonstração de regularidade fiscal. É óbvio que, tratando-se de profissão expressamente regulamentada por Lei, a administração deverá exigir da empreiteira indicada pela seguradora a mesma qualificação técnica exigida na licitação, inclusive o registro na entidade profissional competente, condição indispensável para realização de atividades nessa área, em nosso país.
O performance bond é uma inovação no ordenamento jurídico das contratações da administração pública brasileira e pode ser muito útil para evitar obras inconclusas. Para tanto, deverá ser manejado pela administração pública em todas as suas contratações de obras e serviços de engenharia. Deve representar, por certo, uma elevação no custo da obra, pois é natural que as licitantes transfiram para o valor de sua proposta o correspondente a esse encargo. No entanto, tal elevação tende a ser minimizada, em primeiro lugar diante da própria competição que se instalará no curso do procedimento licitatório. E, em segundo lugar, levando em consideração a relação benefício / custo, pois representará uma tranquilidade para a administração contratante, a certeza, em alto grau de probabilidade, das obras públicas serem executadas até o seu final. É o que se espera.
[1] A auditoria do TCU foi realizada em obras executadas no âmbito do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, e da CEF – Caixa Econômica Federal, MEC – Ministério da Educação, DNIT – Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes e FUNASA – Fundação Nacional de Saúde, como pode ser verificado no Acórdão nº 1079/2019-P.