Introdução
Muitas discussões em torno do PL 4253/2020[1] nos últimos dias, especialmente após a publicação do Parecer nº 10, do PLEN/SF[2] em 19 de fevereiro, trazendo a sua redação final. É compreensível a ansiedade pela longa espera de uma nova Lei de Licitações após tantos anos.
Considerando a possibilidade da consolidação em uma única norma de várias legislações esparsas contendo conteúdos procedimentais distintos, por mais que se fale e se discuta ainda será pouco para assimilar tanta informação.
Para quem já lida com as legislações do Pregão, especialmente com o Decreto do Pregão Eletrônico, com as regras do Decreto Federal de Registros de Preços, com a Instrução Normativa/IN/MPOG/SLTI nº05/2017[3] e com o RDC- Regime Diferenciado de Contratação, não há grandes surpresas no texto do PL, mas para quem não segue essas diretrizes, assimilá-las é um desafio.
O que mais chama a atenção no PL é a preocupação com a fase preparatória da licitação e da contratação, temas relegados por anos, assim como as regras específicas da Gestão e Fiscalização Contratual, que na Lei 8.666/93 é muito sucinta.
Os temas abordados a seguir trazem de forma abreviada as alterações significativas a serem inseridas na nova Lei sob a ótica da execução dos contratos.
Quem lida com contratos públicos sabe que não há como falar desse tema sem falar da fase pré-contratual ou preparatória. O PL traz no artigo 6º, itens XX e XXIII[4] a definição do Estudo Técnico Preliminar como “documento constitutivo da primeira etapa do planejamento” e do TR- Termo de Referência, detalhando seu conteúdo nas alíneas “a” a “j”. Ocorre que estas disposições já se encontram em vigor na instrução normativa do Ministério da Economia nº 40[5] e no art.30 da IN/MPOG/SLTI nº05/2017[6].
No caso específico das regras sobre a composição do TR, essas foram à época realmente inovadoras para toda a Administração Pública Federal, porém, na prática de difícil aplicabilidade. Isto porque, as realidades organizacionais existentes no Brasil são extremamente antagônicas, ao mesmo tempo em que algumas dessas organizações dispõe de servidores capacitados para realizar atividades de forma segmentada (segregação de funções), temos outras organizações em que não há nem capacitação, nem servidores para capacitar. Desta forma, quando o PL insere na sua redação tais diretrizes da Instrução Normativa (Poder Executivo Federal) inova procedimentos em âmbito nacional com repercussão nos Estados e Municípios, e cria a necessidade urgente de revisão de processos de trabalho frente as estruturas de pessoal existentes.
O PL não traz uma simples alteração na Lei de licitações. É mais que isso, o PL 4253/2020 robusto e detalhado da forma como está, em sendo convertido em Lei na sua integralidade será uma quebra de paradigmas nacional. É um novo mundo nas contratações públicas, e como afirma o Professor Egon Bockmann na sua “Aula de Amanhã” [7]: (…) “A futura Nova Lei de Licitações exigirá hermenêutica própria, eis que cria novo microssistema de licitações e contratos administrativos. Não poderá ser interpretada como mera atualização da Lei 8.666/1993”. São novos tempos, novos paradigmas, novos caminhos a seguir.
- O impacto das regras procedimentais no PL
Para esclarecer melhor, o impacto da pormenorização no detalhamento da definição do objeto, seja no ETP, seja no PB- Projeto Básico ou TR- Termo de Referência, inserido no novo texto, obrigará aos servidores responsáveis por sua elaboração de um maior aprofundamento nas questões que envolvem sua composição e características físicas e jurídicas do objeto, incluindo todas as possíveis variáveis na modelagem da solução. Citando como exemplo: na elaboração do TR, a simples necessidade de definição dos critérios de medição e de pagamento (alínea “g” do item XXIII do art.6º) são tópicos enigmáticos, e dependendo do objeto vai exigir capacitação específica.
São muitas regras esparsas não utilizadas atualmente por outros entes federativos que passarão a ser exigidas sem restrição, assim, os procedimentos que se relacionam com os cuidados com o processo, desde a correta definição do objeto até a sua fiscalização exige a necessidade de conhecimento técnico específico, identificando a natureza jurídica do objeto suas características e com isso a definição da unidade de medida da contratação.
Definir quantitativos e prazos, compreender sua consistência e definir a solução como um todo ou não, são decisões importantes que exigem um Estudo Preliminar prévio ao TR e mais que isso, exige não só um único servidor para realizar tais atividades, e sim, uma Equipe multidisciplinar.
- O modelo de execução do objeto e o modelo de gestão do contrato
Os modelos de execução do objeto e de gestão do contrato previstos no escopo do TR trazem, de forma significante, a ideia concreta do que se deseja contratar e o formato da sua gestão, o que na maioria das vezes não é conhecido por quem elabora o TR. Mais uma vez, destaca-se a grande importância do ETP (Estudo Técnico Preliminar) como instrumento de mapeamento do objeto da contratação, sem o qual é impossível se definir com clareza as cláusulas contratuais decorrentes.
É a fase preparatória da licitação e sua repercussão contratual, que nos remete a “linha do tempo do processo de contratação”[8], na qual já o defini numa visão sistêmica do processo, como sendo a interligação de todas as suas etapas, portanto, fundamentais para o êxito da contratação.
Nesse contexto, verifica-se que o artigo 18 do PL[9] descreve a fase preparatória da contratação sendo “caracterizada pelo planejamento”, no qual se observam todas as premissas pré-contratuais, como a compatibilização do planejamento orçamentário com o plano de contratações anual, regra já implementada pelo Governo Federal desde 2019. O caput do artigo 18, abriga a abordagem na fase preparatória dos temas técnicos, mercadológicos e de gestão do objeto, pontos influenciadores e definidores da contratação.
Um ponto se destaca no mesmo artigo, no item VIII[10], além dos critérios já conhecidos como: a forma de julgamento e o modo de disputa, foi mais uma vez sobrelevado o tema “Sustentabilidade”, já previsto no art.3º da Lei 8.666/93.
No texto do artigo citado ficou evidenciada a importância da análise de todo o ciclo de vida do objeto[11] a ser adquirido na escolha da proposta mais vantajosa da licitação e a eficiência da forma de “combinação desses parâmetros”. O que significa dizer que a cada dia que passa fica mais desafiador a Administração Pública ignorar a exigência de critérios que se preocupem com o processo produtivo dos objetos das contratações, desde seu nascedouro, disponibilidade e descarte final (sustentabilidade ambiental) correlacionando o objeto com os resultados esperados de eficiência e vantajosidade.
Ainda em relação ao modelo de gestão do contrato, é importante destacar o inciso XVI do artigo 6º que elenca alguns requisitos a serem inseridos no modelo de gestão de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, como: a disponibilização dos empregados do contratado nas dependências do contratante e o não compartilhamento desses recursos, humanos e materiais; esses pontos serão objeto de fiscalização diária pelos fiscais dos contratos.
Pelo que se conhece da Administração Pública atual é forçoso reconhecer que o nível de exigência carregado no projeto da nova lei está acima da capacidade técnica de muitos agentes públicos, operadores e executores, e não só por falta de capacitação permanente, mas também pela ausência de experiência na realização de novas atividades, como: a elaboração de uma matriz de riscos nos contratos de terceirização; estabelecimento de critérios em que a Administração tenha maior retorno financeiro, critério este a ser utilizado “exclusivamente para a celebração de contrato de eficiência”[12], exigindo do agente a realização de um estudo preliminar que observe a maior economia para a Administração e a forma de remuneração.
Percebe-se que são muitos os temas e definições a serem compreendidos ainda na fase preparatória, destacando-se: a novel da modalidade do “diálogo competitivo”, e ainda a inserção da contratação integrada e semi-integrada, a implementação do Compliance, a capacitação dos agentes públicos, a inversão de fases, novos conceitos de obras e serviços “comuns e especiais de engenharia”. Sem esquecer da sempre questionada “segregação das funções” para um “mundo ideal” de licitações e contratos. Surge também como novidade a nova duração dos contratos continuados e a contratação de fornecimento com a prestação de serviços associado, além das questões relativas as responsabilidades dos pareceristas e a interferência permitida do controle interno junto à gestão administrativa.
Por derradeiro, importa atentar para o novo PMI- Procedimento de Manifestação de Interesse previsto no artigo 80[13], que. se trata de procedimento em que os órgãos da Administração Pública poderão mediante um chamamento público convocar a iniciativa privada para dispor sobre informações acerca de seus conhecimentos e soluções de melhoria para o setor público, trazendo o chamamento especial para participação de startups[14], o que sem dúvida é uma investida interessante pelo alcance da tão almejada inovação no engessado setor público.
Conclusão
Em linhas gerais a fase preparatória segue as regras já conhecidas e instrumentalmente disciplinadas pelo Ministério da Economia por meio das instruções normativas. Porém, é importante trazer a lembrança de que essas regras não surgiram do acaso, e sim após diversas determinações do Tribunal de Contas da União, das quais se destaca o acórdão 2.622- Plenário[15]. Tais determinações e recomendações demonstram a evolução no sentido de exigir da administração maior controle acerca de pontos definidores das contratações.
Nesse aspecto, as diretrizes incorporadas nas legislações vigentes e transpostas para o texto da futura lei, trazem basicamente as seguintes premissas: (i) a necessidade de PLANEJAMENTO aliado a um programa de aquisições e contratações de bens e serviços, e gestão dos contratos; (ii) a possibilidade de uma “modelagem básica de processos de trabalho”, eis que padroniza procedimentos; (iii) a preocupação com a capacitação do gestor diante das responsabilidades dos agentes;(iv) a segregação das funções; (v) a indicação de definições e conceitos no sentido de padronizar entendimentos conforme a jurisprudência; (vi) as questões referentes ao acompanhamento e fiscalização contratual previstas ainda na construção do TR, indicando as métricas dos serviços, entre outras orientações.
O Tribunal de Contas da União
exerceu papel fundamental na construção dessas novas diretrizes a serem
institucionalizadas nacionalmente com a publicação da nova lei na íntegra,
pois, gradativamente por meio de diretrizes constantes dos Acórdãos 786/2006,
1480/2008 e 1.915/2010, que antecederam o 2.622/2015 acabaram por formatar as
instruções normativas do Governo federal e o Decreto 9.507 incorporados no
texto da futura lei.
[1] Brasil.PL 4253, de 2020. [Em linha]. [Consult. 16 fev. 2021]. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8879045&ts=1611621651945&disposition=inline
[2] Senado Federal. Parecer nº 10 -PLEN/SF. [Em linha]. [Consult. 20 fev. 2021]. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8927841&ts=1613773153729&disposition=inline
[3] Instrução normativa nº05, de 26 de maio de 2017. [Em linha]. [Consult. 16 fev. 2021]. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/20239255/do1-2017-05-26-instrucao-normativa-n-5-de-26-de-maio-de-2017-20237783
[4] Brasil.PL 4253, de 2020. [Em linha]. [Consult. 16 fev. 2021]. Ver (…) “art.6º, XXIII – termo de referência: documento necessário para a contratação de bens e serviços, que deve conter os seguintes parâmetros e elementos descritivos: a) definição do objeto, incluídos sua natureza, os quantitativos, o prazo do contrato e, se for o caso, a possibilidade de sua prorrogação; b) fundamentação da contratação, que consiste na referência aos estudos técnicos preliminares correspondentes ou, quando não for possível divulgar esses estudos, no extrato das partes que não contiverem informações sigilosas; c) descrição da solução como um todo, considerado todo o ciclo de vida do objeto; d) requisitos da contratação; e) modelo de execução do objeto, que consiste na definição de como o contrato deverá produzir os resultados pretendidos desde o seu início até o seu encerramento; f) modelo de gestão do contrato, que descreve como a execução do objeto será acompanhada e fiscalizada pelo órgão ou entidade; g) critérios de medição e de pagamento; h) forma e critérios de seleção do fornecedor; i) estimativas do valor da contratação, acompanhadas dos preços unitários referenciais, das memórias de cálculo e dos documentos que lhe dão suporte, com os parâmetros utilizados para a obtenção dos preços e para os respectivos cálculos, que devem constar de documento separado e classificado; j) adequação orçamentária”. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8879045&ts=1611621651945&disposition=inline
[5] DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. [Em linha]. [Consult. 16 fev. 2021]. Publicado em: 26/05/2020. Edição: 99. Seção: 1. Página: 15.Órgão: Ministério da Economia/Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital/Secretaria de Gestão. INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 40, DE 22 DE MAIO DE 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-40-de-22-de-maio-de-2020-258465807
[6] Instrução normativa nº05, de 26 de maio de 2017. [Em linha]. [Consult. 16 fev. 2021]. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/20239255/do1-2017-05-26-instrucao-normativa-n-5-de-26-de-maio-de-2017-20237783
[7] Moreira, Egon Bockmann. Professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da UFPR. Advogado. Mediador. Árbitro.Post [Linkedin page]. Recuperado em 15 de fevereiro de 2021 em: https://www.linkedin.com/in/egon-bockmann-moreira-66357127/
[8] Furtado, Madeline Rocha et al. Gestão de contratos de terceirização na Administração Pública: teoria e prática. 7. ed. rev. ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2019. 556 p. Ver: “Linha do tempo do processo de aquisições públicas”, item 3.2, p.104.
[9] Brasil.PL 4253, de 2020. [Em linha]. [Consult. 16 fev. 2021]. Ver (…) “Art. 18. A fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento e deve compatibilizar-se com o plano de contratações anual de que trata o inciso VII do caput do art. 12 desta Lei, sempre que elaborado, e com as leis orçamentárias, bem como abordar todas as considerações técnicas, mercadológicas e de gestão que podem interferir na contratação, compreendidos:” Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8879045&ts=1611621651945&disposition=inline
[10] Brasil.PL 4253, de 2020. [Em linha]. [Consult. 16 fev. 2021]. Ver (…) art. 18. (…) “VIII – a modalidade de licitação, o critério de julgamento, o modo de disputa e a adequação e eficiência da forma de combinação desses parâmetros, para os fins de seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, considerado todo o ciclo de vida do objeto; Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-.getter/documento?dm=8879045&ts=1611621651945&disposition=inline
[11] De acordo com a Lei que trata da Política Nacional de Resíduos Sólidos- PNRS- Lei nº 12.305, art.3º. [Em linha]. [Consult. 16 fev. 2021]. Ver (…) art.3º, inciso, “IV – ciclo de vida do produto: série de etapas que envolvem o desenvolvimento do produto, a obtenção de matérias-primas e insumos, o processo produtivo, o consumo e a disposição final.”
[12] Brasil.PL 4253, de 2020. [Em linha]. [Consult. 16 fev. 2021]. Ver (…)” Art. 6º. (…) LIII – contrato de eficiência: contrato cujo objeto é a prestação de serviços, que pode incluir a realização de obras e o fornecimento de bens, com o objetivo de proporcionar economia ao contratante, na forma de redução de despesas correntes, remunerado o contratado com base em percentual da economia gerada”. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8879045&ts=1611621651945&disposition=inline
[13] idem. [Em linha]. [Consult. 16 fev. 2021]. (…) “Art. 80. A Administração poderá solicitar à iniciativa privada, mediante procedimento aberto de manifestação de interesse a ser iniciado com a publicação de edital de chamamento público, a propositura e a realização de estudos, investigações, levantamentos e projetos de soluções inovadoras que contribuam com questões de relevância pública, na forma de regulamento”. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8879045&ts=1611621651945&disposition=inline
[14] idem. [Em linha]. [Consult. 16 fev. 2021]. (…) “§ 4º O procedimento previsto no caput deste artigo poderá ser restrito a startups, assim considerados os microempreendedores individuais, as microempresas e as empresas de pequeno porte, de natureza emergente e com grande potencial, que se dediquem à pesquisa, ao desenvolvimento e à implementação de novos produtos ou serviços baseados em soluções tecnológicas inovadoras que possam causar alto impacto, exigida, na seleção definitiva da inovação, validação prévia fundamentada em métricas objetivas, de modo a demonstrar o atendimento das necessidades da Administração”. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8879045&ts=1611621651945&disposition=inline
[15] Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 2622/2015 – TCU – Plenário. [Em linha]. [Consult. 16 fev. 2021].Disponível em: file:///C:/Users/rfurt/Downloads/ACORDAO%20TCU%202622-2015%20(1).pdf